Coluna Literatura com Mazé Nóbrega

Contos e recontos, leituras e releituras, escrita e reescrita

Aprende-se a falar e a escrever “tocando a linguagem de ouvido”1 (Albano, 1990), isto é, assimilando a palavra dos outros, interagindo com a linguagem. É por meio da convivência com textos que repetimos de memória, ou que recontamos, quer completando, adaptando, suprimindo, modificando, que nos inscrevemos em uma longa cadeia de narradores, de contadores de contos, lendas, fábulas…

O processo de apropriação desses diferentes gêneros – enquanto formas típicas de linguagem – se dá por um processo que Bakhtin chama de ventrilocução, no qual se incorporam outras vozes, palavras alheias, que vão aos poucos se convertendo em palavras “próprias”. É assim que uma série de gêneros literários da tradição popular, cujas fontes são indefinidas, passaram ser contados e recontados das mais variadas formas e estilos.

O reconto tem sua origem na oralidade, sendo na figura do contador de histórias que se dirige a uma plateia. Só muito mais tarde é que o reconto também passou a circular como um texto escrito para ser lido.

Pensando nessa longa jornada, é interessante, a título de exemplo, considerar a trajetória de Ilan Brenman que começou sua carreira contando histórias de várias partes do mundo, para, apenas mais tarde, dar a elas uma versão escrita. Em As narrativas preferidas de um contador de histórias (Moderna), o leitor encontra alguns dos contos que Ilan contava na época em que sua profissão era contar histórias. Não há dúvidas de que essa experiência com a oralidade, marca a sua produção escrita. Tal como a água arredonda as arestas da pedra, a história escrita traz as marcas dos achados expressivos vivenciados na interação com os ouvintes: suas reações, intromissões e comentários.

Por essa razão, os recontos são tão potentes para ensinar as crianças a escrever. Atividades de reconto permitem que a criança fique, em parte, liberada da tarefa de criar o plano do conteúdo já definido pelo texto a ser recontado. A tarefa oferece possibilidade de priorizar aspectos estilísticos característicos do plano da expressão do gênero a que pertence o texto-fonte, explorando uma série de tópicos relativos à construção da textualidade, como as operações de coesão referencial, de conexão e de segmentação do texto. Recontando textos, a criança assimila, progressivamente, os padrões próprios da linguagem escrita.

Um pouco diferente é o trabalho de retextualização feito com obras de autores conhecidos a que se chama de adaptação. A obra adaptada procura aproximar o texto-fonte ao horizonte de expectativas do seu receptor, tornando possível a crianças e jovens dialogarem com a obra e, assim, refletirem a respeito de suas experiências, enriquecerem seu imaginário e ampliarem seu domínio linguístico. Se não recebessem esse tratamento, muito provavelmente, a assimetria existente entre o texto-fonte e seu destinatário inviabilizariam a compreensão da obra. As adaptações cumprem, assim, um papel relevante na formação do leitor literário ao mediar obras clássicas.

Um cuidado, porém, é essencial: prezar pela qualidade do texto adaptado. É importante que, na medida do possível, a adaptação preserve as características do texto-fonte: o tratamento do assunto, a estrutura da narrativa e o estilo do autor, já que há um pacto ético entre quem adapta e o seu leitor. É o que faz Walcyr Carrasco em suas adaptações das obras de Júlio Verne – Viagem ao centro da Terra e Vinte mil léguas submarinas. Através dos recursos de sua escrita autoral como escritor e roteirista de novelas, Walcy assegura uma experiência estética de qualidade: o leitor pode dizer, sem mentir, que conhece as duas obras de Verne.

Um trabalho textual um pouco diferente é o que faz o escritor e ilustrador Jean-Claude Alphen em A outra história de Cachinhos Dourados (Salamandra). Nessa versão, perdida na floresta, Cachinhos se dá conta de que o final da sua história não só já é conhecido, como é muito sem graça. A partir de então, em diálogo com o narrador do conto tradicional, a menina começa a narrar, ela mesma, sua aventura na casa dos três ursos. O que Jean-Claude faz é uma recriação ou releitura.

Em uma recriação ou releitura, o autor “deforma” criativamente um texto preexistente, prestando uma espécie de homenagem à obra que lhe deu origem, por meio da intertextualidade. Demanda, assim, um leitor comparativo, já que, diferentemente de um plágio, em que ao copiar algo o autor deseja apagar a memória do texto-fonte, a releitura é uma criação artística que busca exatamente essa aproximação.

Essa liberdade de brincar com os contos clássicos abre possibilidades para escrita infantil experimentar certa autoria. Um belo convite para nos enroscarmos nos contos e recontos, nas leituras e releituras, na escrita e reescrita.


  • ALBANO, E. C. Da fala à linguagem tocando de ouvido. São Paulo: Martins Fontes, 1990.
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Formada em Língua e Literatura pela PUC/SP, com mestrado em Filologia e Língua Portuguesa pela USP, atuou em diversos programas de formação continuada. Assessora escolas particulares de São Paulo. É coordenadora dos projetos de leitura da Editora Moderna, além de atuar como professora de cursos de formação de escritores. Atualmente, assina a coluna Literatura com Mazé Nóbrega no blog Redes Moderna.