Coluna Escola Diversa

Preconceito linguístico

Olá!

Que alegria estarmos juntos e juntas novamente. O tema deste mês é Preconceito Linguístico e este assunto me faz lembrar um ‘causo’ real que quero contar para vocês.

Antes de começar a contar quero te pedir algo muito importante: Ao ler, exerça o máximo do seu senso crítico. Leia sem defesas, ou seja, deixe um pouco de lado suas certezas e se permita pensar em possibilidades diferentes para suas opiniões.

Não é sobre você mudar ou não mudar de ideia. Permita-se ouvir, ou neste caso, permita-se ler, pensar e aí sim manter ou mudar suas ideias.

Afinal, certezas demais só atrapalham.

Agora sim…continuando…

Um mateiro chamado Josué

Trabalhei muitos anos na área ambiental. E nesta época eu viajava para diversos estados do Brasil. Cheguei a morar em muitos lugares. Eu fazia muito o que se chama de ”trabalho de campo”, que são atividades de vistoria ou demais atividades realizadas no local onde se dão as ocorrências do objeto de estudo/trabalho. Nesta época eu trabalhava no processo de licenciamento ambiental como coordenadora de grandes empreendimentos de energia.

E aqui é que eu chego no nome do senhor Josué. O senhor Josué era mateiro. Mateiro é o trabalhador/profissional que apoia na extração de madeira autorizada (no caso de linhas de transmissão por exemplo, onde é preciso se autorizar e depois retirar algumas árvores para que a linha possa passar) apoia na classificação das toras e da cubagem/medição de árvores, ajuda a abrir caminho/trilha na mata fechada dentre outras atividades.

Mas muitas vezes o mateiro é contratado sempre que começa um novo projeto em sua região e já o procuram por indicação. Isso porque este trabalhador conhece a região quase como a palma da mão. Além disso, conhece os perigos, as facilidades, os desafios e as melhores práticas para um bom trabalho naquele local.

A maior parte dos mateiros que conheci não tinham o segundo grau completo. A maioria não tinha completado o ensino médio. Alguns eram analfabetos funcionais. Todos eram pessoas brilhantes.

Conheci o senhor Josué em 2014, ele tinha 63 anos. Estatura mediana, franzino, olhos bem redondos, sempre com boné ou outro chapéu na cabeça. Adorava um cigarro de palha e se sentia mais ” à vontade ” pegando a marmita dele e indo comer debaixo de alguma árvore, enquanto o restante da equipe comia no refeitório da obra.

Um dia, conversando com o senhor Josué descobri que, assim como eu, ele tinha medo de borboletas. Pense numa pessoa que sabia reconhecer barulho de onça, de cobra, sabia qual era o bicho pelo rastro que ele deixava na terra, mas tinha medo de borboletas. Rimos juntos e, desde esse dia em diante, muitas vezes peguei meu prato e fui comer com o senhor Josué.

O Senhor Josué era de uma doçura imensa. Inteligente, sabia dizer as espécies das árvores pelo desenho e pela tonalidade das folhas. Certo dia numa reunião superimportante o engenheiro responsável não pode comparecer. E o restante da equipe estava numa vistoria técnica importante na cidade vizinha. Tínhamos na reunião técnicos renomados de diferentes órgãos ambientais de licenciamento… e quem melhor que o senhor Josué para falar? Pensei eu.

E lá veio ele, todo feliz em poder ajudar e em participar de ” uma reunião importante” como ele me disse depois. Em dado momento da reunião o senhor Josué disse: dotô pegue a pranta faiz favô.”

Um breve silêncio e alguns risos baixinhos.

Percebi que desta frase em diante muita gente não ouviu quase nada do que o senhor Josué disse. Ele explicou com maestria todo ocorrido na região e como a equipe conseguiu fazer a abertura necessária na mata, sem sair da faixa autorizada e sem gerar atritos com moradores locais.

Ao final, o responsável do órgão licenciador parabenizou o senhor Josué. Disse ainda que poucas vezes algo foi explicado de maneira tão simples e objetiva. Depois de tantos elogios dados ao senhor Josué por aqueles que eram os principais interessados nas informações (ou seja, os técnicos do órgão licenciador) os demais deram parabéns também, mesmo com seus sorrisos sem graça e visivelmente desconfortáveis. O tal engenheiro que faltou na reunião, ao saber de tudo, primeiro ficou furioso por ter sido substituído por ” um mateiro analfabeto” como ele dizia, mas teve que engolir a situação dado o sucesso do senhor Josué.

O que é Preconceito Linguístico

Discriminação social que consiste em julgar o indivíduo pela forma como ele se comunica. O parâmetro desse julgamento é a chamada norma culta: quanto mais distante dela, mais criticado (e rebaixado) é o falante. O preconceito linguístico é social, já que no Brasil, educação, renda (e podemos adicionar raça), classe são temas interligados.

Falar sobre o preconceito linguístico não é dizer que ”tudo bem as pessoas não terem acesso a norma culta”. Não é romantizar o analfabetismo, não é dizer que ”tudo bem se uma pessoa fala e escreve ”errado”, ou seja, fora da gramática normativa.

Falar sobre preconceito linguístico é questionar o porquê de, não por coincidência, um grupo específico de pessoas não têm acesso a norma, não tem acesso à educação de qualidade, por isso desenvolvem uma forma própria de comunicação e são novamente, duplamente, julgadas e punidas por isso.

O preconceito linguístico também considera que há uma confusão de entendimentos quanto aos significados de língua e de gramática.

Língua e Gramática

Gramática é o estudo dos fatos da linguagem. A gramática apresenta regras e exerce a função de analisar as estruturas que o falante de uma língua tem programado em sua memória e que lhe permitem usar sua língua. Ela também descreve o sistema de um idioma.

Já a língua é um elemento dinâmico, uma importante ferramenta para a comunicação que deve estar sempre à disposição dos falantes e, por esse motivo, desconsiderar as inúmeras variações linguísticas é ato de preconceito pois  exclui a importância dos fatores sociais e culturais para a formação de uma língua.

Voltando a história do senhor Josué…

Naquela época lembrei de alguns exemplos trazidos pelo Marcos Bagno em seu livro Preconceito Linguístico (que recomendo muito). Peguei o livro, reli esse capítulo e depois fui conversar com o senhor Josué. Li em voz alta com ele o trecho que diz:

Fenômeno fonético que contribuiu para a formação da própria norma padrão da língua portuguesa

Norma PadrãoEtimologiaOrigem  
PragaPlagaLatim
CravoClavuLatim
FracoFlaccuLatim
PregaPlicaLatim

Todas estas palavras, como percebemos, tiveram um L em sua formação de origem que depois virou R. Então, quando a língua estava se formando e as pessoas usavam L e não R, faziam isso por terem algum retardo ou falta de inteligência ou conseguimos compreender que este foi um movimento cultural de formação da língua?

Fatores Sociais

Só se comunica quem vai à escola? Ou quem vai à escola se comunica de uma maneira diferente de quem não vai à escola?

Reforço aqui, incansavelmente, que esta não é a romantização da falta de educação de qualidade. É justamente o contrário. Existe uma parcela enorme de pessoas que não foram à escola e uma outra parcela também enorme que está na escola mas não consegue acessar a educação, a formação, o ensino da melhor maneira. Isso porque fatores sociais têm impacto severo neste processo. Não à toa, as pessoas que não estão dentro do que chamamos de “gramática” ou ”norma culta” são, em sua maioria, pessoas pobres.

O preconceito linguístico só mantém essas pessoas cada vez mais distante dos espaços onde a educação de qualidade está presente.

Rir, debochar, segregar a até duvidar da capacidade intelectual de uma pessoa porque ela fala/escreve ”errado” é alimentar a manutenção das desigualdades sociais.

Ao corrigir o texto de um aluno ou aluna, você trava no primeiro erro de escrita e, considera que, seja o que for que ele ou ela estiver escrito, não será bom porque a gramática está ruim? E se, em vez disso, você ler, qualificar o texto no que se refere a ” carga literária” e além disso, pontuar os erros de gramática?

Veja bem: Não precisa ser uma coisa ou outra, entende? Você não precisa, nem deve, ignorar os erros de escrita, mas também não deveria ignorar a possível existência de uma bela história, com uma estrutura interessante, que envolve o leitor, que tem início meio e fim… ignorar tudo isso porque a gramática do seu aluno está ruim é desperdiçar uma bela oportunidade de ensinar e aprender.

A escola é um espaço social de trocas, ensino, aprendizagem, conflitos, encontros…E neste contexto, manifestar ao seu aluno ou aluna que seus textos têm qualidade, têm potencial e que é preciso melhorar a gramática, isso sim é mexer positivamente com a autoestima destes estudantes.

A gramática e a norma culta não devem ser ferramentas a serviço da segregação, da discriminação mas sim aliadas na manutenção da língua enquanto elemento cultural, enquanto preservação deste elemento. E sem esquecer que  a língua é viva, permitindo mudanças.

Nós educadores precisamos ser elos, pontes. Imagine uma turma que tem resistência à leitura, às aulas de história, de redação mas que é surpreendida por um tema que faz parte de seu cotidiano. Onde haja espaço de criar e onde suas criações recebam críticas positivas também.

O Senhor Josué infelizmente se foi. Uma das vítimas do Covid. Mas tive a oportunidade de ouvir dele uma história que ele criou. Ele disse que adorava escrever mas achava que não era ” algo pra ele”. Daí em 2018, motivado por seu netinho, que adorava histórias, ele disse que inventou um conto. ”Eu contando o povo até gosta, mas não sei colocar as palavras certas para passar para o caderno.” me disse.

Existem milhares de Josué por aí. Esperando que ouçam suas histórias e reconheçam o quanto elas podem ser divertidas, interessantes, curiosas. Para depois disso, abraçados pelo afeto, ganhem coragem para aprender o que quiserem, de gramática a mapas geográficos, e que terão muito a ensinar também.  Aprender precede confiar. Confiar no que ensina e confiar em si mesmo, na sua capacidade de aprender. E isso é uma demanda de afeto. No final das contas, isso é tudo que importa.

Esse Brasil grandão

Primeiramente, imagine só pensar que a língua falada no Nordeste seja igualzinha à falada em Belém e no Rio de Janeiro. Agora imagine que você está numa destas regiões e recebe um novo aluno de outro estado. Imagine que a cada exemplo falado, escrito, lido, você pontue que seu estudante está errado, sem considerar todo contexto cultural no qual ele estava inserido e ignorando que no Estado dele muitas coisas fazem sentido e agora, num novo local, tudo pode parecer erro de português.

Ainda hoje vemos, com tristeza, que o Sul e Sudeste do Brasil segue sendo referência de certo e errado para muitas coisas, incluindo a língua.

Preconceito linguístico é um tema sério e que esvazia as possibilidades de aprendizagem. Precisamos pensar, aprender e agir sobre isso. Precisamos avançar juntos e juntas.

Te espero aqui mês que vem!

Porque este encontro não acaba nem aqui nem lá. Este encontro ainda tem muito para contar. E eu, que já estou indo embora, te encontro já já!

Janine Rodrigues

Escritora, educadora Fundadora da Piraporiando

Sobre o(a) autor(a)

Artigos

Formada em Gestão Socioambiental, com especialização na mesma área pela UFRJ, Janine Rodrigues começou a escrever aos 8 anos de idade e hoje, além de escritora, é educadora e fundadora da Piraporiando, uma das 10 Edtechs mais importantes da América Latina. A Piraporiando é voltada à Educação para a diversidade e desenvolve experiências e conteúdos antirracistas, antibullying, antipreconceito e de promoção da equidade de gênero. Eleita pela Forbes como uma das 12 pessoas negras mais inovadoras, Janine trabalha pela qualidade da educação no Brasil e, atualmente, assina a coluna Escola diversa no blog Redes Moderna.