Quando o Brasil criou o Sistema Único de Saúde (SUS), em 1988, estabeleceu-se um marco civilizatório: o direito universal à saúde, garantido por uma rede pública integrada, descentralizada e com gestão compartilhada entre União, estados e municípios.
Mais de três décadas depois, o país começa a discutir um conceito semelhante para outro direito fundamental: a educação. Pensar em um “SUS para a educação” significa reconhecer que o aprendizado também precisa ser garantido por um sistema público articulado, equitativo e baseado em evidências.
A Constituição de 1988 já determina que a educação é dever do Estado e direito de todos. No entanto, a realidade brasileira mostra o quanto essa garantia ainda é desigual. Dados do INEP (Censo Escolar 2023) indicam que cerca de 3,2 milhões de crianças e adolescentes ainda estão fora da escola, e apenas 56% dos alunos do ensino médio alcançam níveis adequados de proficiência em português e matemática. A fragmentação das políticas educacionais, marcada por descontinuidade, desigualdade de recursos e ausência de integração entre os entes federativos, constitui um dos principais obstáculos para a efetivação desse direito.
Contar com um “SUS para a educação”, ou seja, um sistema nacional articulado de educação, o SNE (embora o SNE tenha sido aprovado no Senado, a aprovação plena como lei complementar ainda não está concluída, dependente da sanção presidencial e da tramitação final), permitiria definir padrões mínimos de qualidade, fluxos coordenados de gestão e mecanismos de cooperação intergovernamental que garantam equidade e eficiência no uso dos recursos públicos.
Financiamento colaborativo e regulação integrada
No modelo do SUS, cada esfera de governo possui responsabilidades claras: o financiamento é solidário e a gestão é descentralizada, mas regulada por diretrizes nacionais. O mesmo princípio pode inspirar o desenho de um Sistema Nacional de Educação (SNE) efetivo, previsto desde o Plano Nacional de Educação (PNE), mas ainda em processo de regulamentação.
Atualmente, o Novo Fundeb representa um avanço nesse sentido, pois criou o VAAR (Valor Aluno Ano Resultado). O VAAR é um mecanismo de redistribuição que conecta financiamento à aprendizagem e à equidade, premiando redes que melhoram indicadores de desempenho e reduzem desigualdades.
Segundo o MEC (2024), R$ 3,7 bilhões já foram repassados a redes públicas por meio do VAAR, beneficiando mais de 5 mil municípios. Essa política, além de inovar na forma de financiamento, abre caminho para uma governança educacional mais integrada, orientada por resultados e sustentada por dados concretos. Portanto, trata-se de um passo essencial para consolidar um “SUS da Educação”.
Equidade como princípio estruturante
O grande legado do SUS é o conceito de universalidade com equidade: todos têm direito ao serviço, mas o sistema prioriza quem mais precisa. Aplicado à educação, esse princípio significa garantir que todas as crianças aprendam, independentemente de onde vivem ou de suas condições socioeconômicas.
Hoje, a desigualdade educacional é um dos maiores desafios do país. De acordo com o Todos Pela Educação (2024), um estudante da rede pública urbana tem, em média, três vezes mais acesso a recursos pedagógicos e tecnológicos do que um aluno da zona rural. Além disso, a taxa de evasão escolar entre adolescentes em situação de vulnerabilidade social é duas vezes maior que a entre os de maior renda.
O SNE pode e deve reduzir essas diferenças, estabelecendo padrões mínimos de infraestrutura, formação docente e tempo de aprendizagem, com mecanismos de acompanhamento e apoio técnico. Assim, a equidade deixaria de ser apenas uma meta e passaria a integrar a estrutura regulatória da educação pública.
A importância da intersetorialidade
A aprendizagem não é responsabilidade exclusiva da escola. Assim como o SUS atua de forma intersetorial, integrando ações entre saúde, assistência social e meio ambiente, a educação também precisa dessa visão ampliada.
Crianças com insegurança alimentar, problemas de saúde ou contextos familiares vulneráveis enfrentam mais barreiras para aprender. Estudos do Unicef (2023) mostram que 42% das crianças em extrema pobreza apresentam atraso escolar. Um “SUS da Educação” só será possível, portanto, se houver integração efetiva entre políticas de educação, saúde, assistência social e cultura, com fluxos de informação e atendimento que coloquem o estudante no centro da rede de proteção social.
Programas intersetoriais, como o Saúde na Escola e o Busca Ativa Escolar, já apontam caminhos possíveis. O fortalecimento dessas iniciativas, com integração de bases de dados e coordenação territorial, é essencial para um sistema de educação que funcione de forma inteligente e preventiva, e não apenas corretiva.
Gestão baseada em dados e inteligência pública
Outro pilar de um possível SNE é o uso de sistemas inteligentes de gestão e dados integrados. A digitalização da gestão educacional permite que gestores acompanhem, em tempo real, informações sobre frequência, desempenho, infraestrutura e formação docente. Isso facilita decisões rápidas e baseadas em evidências.
Alguns estados já começaram a trilhar esse caminho. Ceará, Espírito Santo e Goiás implantaram plataformas de monitoramento educacional que cruzam dados de avaliação, fluxo escolar e gestão orçamentária. O resultado é mais eficiência na alocação de recursos e maior capacidade de identificar escolas e estudantes em risco de defasagem.
Essas experiências demonstram que a tecnologia, quando usada de forma ética e estratégica, pode se tornar a espinha dorsal de um sistema integrado, permitindo transparência, coordenação e cooperação federativa, como ocorre na saúde.
O Brasil tem, no SUS, um exemplo de política pública que alia descentralização, universalidade e controle social. Adaptar essa lógica à educação significa criar mecanismos de cooperação institucional e territorial, com comissões intergestores tripartites, planos de metas compartilhados e indicadores unificados.
Ou seja, essa arquitetura colaborativa pode garantir maior continuidade nas políticas, reduzindo o impacto de trocas de governo e assegurando que o direito à educação não dependa da geografia ou da gestão de plantão.
Um abraço e até a próxima!